FONTE: https://br.pinterest.com/pin/769693392535011280/
No meu bairro tem uma igrejinha, antiga e pequenininha: a Capela São Sebastião. Eu a conheci quando meus pais me levaram para a praia do Campeche por um caminho diferente do qual estávamos acostumados. Usando a rua da Capela, alcançamos uma pequena trilha que passava em frente a igreja de portas e janelas azuis e detalhes em amarelo, com um sino e uma cruz.
Fonte: https://mapio.net/pic/p-26357915/
E foi naquele dia, no ano de 2019, que eu conheci a tia Neli, uma Senhora muito simpática que estava varrendo a calçada em frente a igrejinha quando passávamos por ali. Sem querer, deixei cair uma das pazinhas de meu balde de areia no início da trilha ali perto e, de longe, ela percebeu e chamou a nossa atenção.
Puxando uma conversa nos aproximamos dela e eu, curiosa como sempre, quis saber o que ela estava fazendo ali.
- “Eu sou a Neli e trabalho aqui na igreja. Há mais de 20 anos que venho aqui para ajudar a mantê-la limpinha e arrumada. E faço isso com muito gosto! ” - Respondeu feliz.
- “Nossa! Então esta igreja deve ser muito velha mesmo! ” – Disse admirada.
Então, ela nos contou, com um sotaque bem manezinho, que se acredita que a igreja da Capela, como é conhecida, foi construída no ano de 1826 por uma família rica que morava na comunidade na época. Percebi que a tia Neli sabia muitas coisas a respeito daquele lugar e, enquanto ela contava, eu observada ao redor. Foi quando uma porta azul ao lado da igreja chamou a minha atenção, e acabei descobrindo que ela conduzia para um cemitério. Nesta hora eu lembrei que a igreja da freguesia do Ribeirão da Ilha tem as mesmas cores da igreja da Capela e que lá também existe um cemitério. Intrigada, perguntei à minha mãe:
-“Mamãe, porque é que as igrejas da ilha com portas e janelas azul e detalhes em amarelo tem cemitérios construídos pertinho delas? ”
Sorrindo, mamãe me explicou:
- “Aninha, minha filha, anos atrás era comum que os cemitérios fossem construídos ao lado das igrejas. Os religiosos acreditavam que o último lugar de repouso dos mortos deveria ser perto dos santos. Com o passar do tempo, este pensamento foi mudando e os cemitérios foram sendo construídos em outros lugares das Cidades”.
Fonte: http://www.pmf.sc.gov.br/entidades/susp/index.php?cms=cemiterios&menu=4&submenuid=338
- “Nossa mamãe! Então deve ter muita gente morta aqui!” – Respondi assustada.
Tia Neli percebeu o meu espanto e para descontrai mudou de assunto dizendo:
- “Mas também tem muita gente viva que passa, que chega e que se diverte muito por aqui! Você sabia que todos os anos, aqui na frente da igreja, acontece a Festa do Divino? E não é só isso não, por aqui também passa o Folguedo do Boi de Mamão! ”
- “Boi de mamão! Eu adoro esta história!!! ” – Respondi animada.
Foi naquele instante que eu viajei sem sair do lugar: lembrei de cada detalhe da última vez que eu assisti o Folguedo do Boi. Sabe, eu me sinto tão feliz quando lembro disso, que pensei que talvez você fosse gostar de saber um pouco a respeito. Posso ter contar?
Bem, vamos lá:
Para mim, o Folguedo do Boi de Mamão é a apresentação musical mais legal do universo! Sabe porquê? Porque ela é feita de personagens super coloridos que cantam, dançam e encenam como se estivessem numa grande brincadeira. E o melhor de tudo é que esta diversão toda acontece pelas ruas, escolas e outros lugares da minha cidade. Os personagens representam pessoas e animais que interagem com o público: tem mulher, tem vaqueiro, tem médico, benzedeira, e também uma bicharada! Na verdade, a brincadeira do Boi é uma grande encenação de teatro que fala sobre morrer e viver outra vez.
Fonte: acervo pessoal
Esse aí é o Boi, valente que só! Ele pertence ao Mateus, um dos personagens do Folguedo. Acontece que o boi de Mateus é de estimação e, um dia, ele fica muito doente. Ele não resiste e morre, e Mateus fica desesperado ao saber da notícia. Então, ele decide buscar um médico e uma benzedeira para ajudarem a fazer o boi viver novamente. Eles tentam de tudo para curar o boi e, no final, conseguem. A benzedeira usa raminhos de algumas plantas como o alecrim e a aroeira enquanto faz a sua reza para ressuscitar o boi.
E no meio desta história surgem muitos personagens, e alguns deles são animais que eu vou te apresentar agora. A Bernúnça é um tipo de dragão bravo ou bicho-papão que tem uma boca gigante de jacaré e que se movimenta em direção às pessoas para tentar engoli-las. Na verdade, ela quer comer tudo o que vê pela frente.
Fonte: acervo pessoal
Também tem a Cabra, que representa o touro que não quer lutar. Ela é como se fosse o “boi das crianças”, pois é menorzinha e dança bem rapidinho, é agitada e alegra a todos.
Fonte: http://www.findglocal.com/BR/Florian%C3%B3polis/664621340230911/Balaio-D%27Gatos
O Cavalinho é o outro animal que se junta ao bando, e seus movimentos são rápidos e perfeitos. Ele chega rodopiando, sendo montado pelo Vaqueiro que tem como desejo laçar o boi ressuscitado para levá-lo para casa.
Fonte: acervo pessoal
Esses são os animais mais comuns do Boi de Mamão. Mas também pode surgir outros como o cachorro, o urubu, o urso e mais, dependendo em que região do Brasil a história for contada.
Mas a minha personagem preferida é a Maricota, e eu acho que gosto dela pelo seu jeito alegre, divertido e carinhoso. Ela tem olhos arregalados, curiosos e é desengonçada. Ela fica rodopiando o tempo todo ao som da música e esbarrando no público com seus braços compridos e mãos espalmadas. Aliás, não são só os braços dela que são compridos não, ela mede quase 3 metros de altura!
Fonte: acervo pessoal
O legal é que cada personagem tem o seu momento especial, de aparecer e representar. E é mais ou menos assim: num grande círculo de cantadores, músicos e espectadores, surgem o vaqueiro e o Mateus para dançar. Logo em seguida chega o boi no meio do círculo e começa a rodopiar na direção deles, e também ameaçando ir para cima da plateia. De repente, o boi para feito uma estátua no centro da roda, parecendo morto. Então surge o doutor, que bate nas costas do boi e levanta o seu rabo para examiná-lo, dando água para ele beber. A benzedeira também aparece com as suas ervas e benze o boi. Mateus chega perto do boi e tenta ouvir a sua respiração, enquanto o Vaqueiro assopra pertinho do animal. O boi sente o sopro, se mexe e acaba arremessando o Mateus no chão. Então o Vaqueiro e o Mateus discutem para ver quem vai pagar o doutor e a benzedeira pela cura do boi. Depois, o cavalinho ajuda a laçar o boi e o retira do círculo, levando-o embora. Agora é a vez dos outros personagens entrarem na roda, cada um com o seu tema musical. E, por fim, um desfile acontece com os agradecimentos ao público.
A banda de músicos que acompanha a apresentação, usa instrumentos como o pandeiro, o violão e a gaita para animar a passagem dos personagens do Boi de Mamão. Eu adoro todas as músicas que são tocadas, mas tem uma delas que eu gosto mais:
Mandei fazer um laço
Do couro do jacaré
Pra laçar meu boi barroso
No cavalo pangaré.
Oh senhor mestre vaqueiro
Face sua obrigação
Vá buscar o boi oh! Maninho
E dança bem ligeiro.
Mas, naquela manhã, eu descobri que a Tia Neli sabia muito mais da história do boi do que eu poderia imaginar! Ela até sabia mais do que a minha mãe!! Isto realmente era algo incrível!
Tia Neli aproveitou para me contar que esta festa catarinense, na verdade, é “filha” de uma manifestação cultural nordestina que surgiu perto do ano de 1830, que por lá é conhecida como Bumba-Meu-Boi. Ela explicou que foram os militares pernambucanos que trouxeram a tradição para cá no século XIX, quando vieram para trabalhar na nossa região no passado. E que, apesar disso, o nosso Boi de Mamão é único, por ter cantigas, enredo e encenação que retratam a história da colonização do litoral catarinense. Por aqui, ele já foi chamado de Boi de Pau, Boi de Palha, Boi de Pano para, finalmente, receber o nome de Boi de Mamão que, aliás, dizem que isto se deve ao fato de, em certa ocasião, terem usado um mamão verde para fazer a cabeça do boi.
Um mamão verde? Será mesmo que antigamente existiam frutas tão grandes assim? Será que o mamão “sobreviveu” inteiro até o final da festa? Enquanto eu me fazia todas estas perguntas para mim mesma, tia Neli continuava nos ensinando:
- “Você sabia menina, que cada personagem é criado à mão? Um artesanato bonito que só! Se usa de tudo um pouco: é pano, é madeira, arame e até esponja. Também tem muito papel machê e fitas coloridas para enfeitar o boi. Ah! Esta apresentação é tão linda... e muito famosa também! Ela é conhecida Brasil afora e em cada lugar é chamada de um jeito diferente: é Boi Bumba, Boi Barroso, Boi Pitanga, Boi de Reis. Esse boi ficou famoso de verdade, e aqui em Santa Catarina o seu folguedo é o mais conhecido e o mais popular de todos! E isto fez com que ele se tornasse parte da cultura popular! E sabe o que mais? Eu acho que este boi só prosperou por aqui por ser uma herança cultural dos nossos ancestrais açorianos, viu? ”
“- Como assim Tia Neli?” - perguntei rapidamente, interessada.
- “Eu vou te contar. Os livros dizem que o touro sempre foi um símbolo de força e vitalidade. Então, os povos antigos sempre cultuaram o boi, o homenageando pela ajuda que ele sempre deu aos homens: servindo como força de trabalho e, depois, alimento. Então, para os povos antigos, o boi era realmente sagrado! Dizem que a brincadeira do boi surgiu no Brasil entre os africanos escravizados que, eu seus dias de folga do trabalho, faziam uma armação e brincavam de imitar os movimentos do boi bravo no pátio da senzala, dançando ao som de suas cantorias e batucadas. Isto chamou a atenção de alguns padres jesuítas que, na época, tinham a intenção de catequizar os índios e os escravos. Eles enxergaram naquela brincadeira uma oportunidade para ensiná-los sobre a morte e a ressurreição, fazendo o boi morrer para depois reviver. Com o tempo, esta história se espalhou pelo Brasil a fora.
Fonte: https://culturalmenteversados.wordpress.com/2016/11/05/conheca-a-historia-de-bumba-meu-boi/
Uau! Eu não sabia é nada da história deste Boi mesmo! E foi muito legal aprender tudo isso com a Tia Neli, pois ela realmente era muito sabida das coisas do Boi! Depois desta conversa toda, prometemos nos reencontrar novamente durante a festa do Boi de Mamão que aconteceria em frente à igreja da Capela naquele mesmo ano.
E, assim, nos despedimos e partimos em direção à trilha que nos levaria até a praia. E foi só nos distanciarmos um pouquinho para ouvirmos ela gritar de longe:
- “Menina! Passando o cemitério, quem é vivo pode ir até a praia para dar uma mergulhada na água salgada! Vejo você na festa do folguedo! ”.
Na volta da praia, já em casa, fiquei pensando em tudo o que aprendi com a Tia Neli. E depois do meu banho, senti vontade de desenhar aquela história toda. Olha só o que surgiu:
Este desenho faz parte de uma série de outros, criados para você colorir e aprender a respeito de lugares incríveis na Ilha da Magia. Quer saber mais? Acesse o link:
Naquele mesmo dia, minha mãe aproveitou para me mostrar algo muito especial: um quadro que ela trouxe como lembrança de uma de suas viagens para Pernambuco. Mamãe disse que quando foi para a cidade de Bezerros, visitou o Mestre José Francisco Borges, conhecido como J Borges. Um artista muito especial que faz xilogravuras contando histórias e apresentando personagens da cultura popular brasileira. Esta é uma arte que usa a técnica de fazer gravuras em relevo sobre a madeira. E veja só a história que a xilogravura da mamãe conta, não é realmente fantástica?
Fonte: https://www.pinterest.de/pin/763149099327937521/
Eu acho que eu já sei para onde eu quero ir nas próximas férias de verão! Afinal, eu adoro desenhar e amo o Folguedo do Boi, então, quem sabe este tal de J Borges possa me ensinar a desenhar assim?!
A Capela de São Sebastião do Campeche, localizada no bairro Campeche em Florianópolis, foi considerada Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Município. Ela é um dos pontos de encontro do Folguedo do Boi de Mamão na ilha, uma peça teatral poética que focaliza temas religiosos e do folclore popular, sendo apresentada numa linguagem peculiar e expressiva da cultura de cada localidade. O Boi-de-mamão é uma das tradições populares de origem açoriana mais fortes e antigas do município de Florianópolis, cultivada desde aproximadamente 1840. Também é a dança folclórica mais cultivada na grande Florianópolis e que, em 2019, foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial ou Intangível da Cidade. Atualmente, suas apresentações se restringem à eventos e datas comemorativas em localidades mais tradicionais como o Ribeirão da Ilha, Campeche e outras. Existem várias entidades Folclóricas de Boi de Mamão na ilha, sendo que a do Campeche é uma das mais tradicionais e conhecidas.
Até a próxima aventura pelo nosso rico e fantástico Brasil!
Um abraço carinhoso da Aninha.